Exemplos:
Crônica:
A de sempre
Carlos Drummond de Andrade
— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.
— O preço?
— Não. A variedade. O embaras du choix.
— Mas se você já estava acostumado com uma...
— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. . Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.
— E aí?
— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.
— Não quis dizer o nome?
— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?
— Mas que custa experimentar, homem de Deus?
— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?
— Mais ou menos.
— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?
— Você está divagando.
— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.
— Ou se percam.
— E se percam. Exatamente. 0 importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.
Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?
Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1974, pág. 137.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".
ARTIGO
14/3/2008
Artigo/Folha de S. Paulo
Premiação e castigo na educação
IVAN VALENTE
AS MEDIDAS adotadas pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo têm sido ungidas como a "salvação da lavoura", particularmente a premiação com bônus financeiro para diretores, professores e funcionários, com base especialmente em exames de avaliação de alunos, como o Saresp.
A secretária Maria Helena Castro, em entrevista à revista "Veja", disse que é preciso liquidar alguns mitos na educação. Para ela são mitos: que deve haver isonomia salarial entre professores, que melhores salários levam à melhoria do ensino, que o número de alunos por sala de aula interfere na qualidade do aprendizado, que a escola pública é carente de recursos. Para a secretária, nossos educadores ganham bem, e os recursos educacionais são suficientes. Maria Helena sentenciou que fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, inclusive USP e Unicamp, porque elas se prestam ao "desserviço" de divulgar esses mitos.
Os tucanos estiveram oito anos no governo central e governam São Paulo há 13. FHC vetou o dispositivo do Plano Nacional de Educação que elevava o gasto público com educação de 3,7% para 7% do PIB. Criaram um pseudo-sistema nacional de avaliação para esconder a política de corte dos recursos. Seu objetivo sempre foi diminuir o papel do Estado e atribuir-lhe papel apenas regulatório.
Que resultado o país pode exibir nesses últimos 13 anos que não seja a constatação da péssima qualidade do nosso ensino, da degradação das condições de nossos educadores, do retrato cruel do analfabetismo funcional de 60 milhões de brasileiros? As políticas de fundos para a educação de FHC e de Lula não passam de socialização da miséria. Alguém acredita que o suplemento da União a Estados e municípios, de apenas R$1 bilhão ao ano de recursos novos nos próximos quatro anos, para um universo de 50 milhões de estudantes da educação básica, resultará em algum impacto real na qualidade de ensino?
Podemos nos fiar que a instituição de um piso salarial para o magistério brasileiro de pouco mais de R$ 450 por 20 horas semanais estimule a carreira? Enquanto isso, o país desembolsa R$160 bilhões por ano em juros da dívida pública.
Maria Helena, ao afirmar que o número de alunos por sala de aula é irrelevante para a qualidade da aprendizagem, lembra-nos o documento do Banco Mundial, sua bíblia, que afirma que "nos países de baixa e média renda é necessário diminuir o número de professores, aumentar o número de alunos em sala de aula e utilizar novas tecnologias educacionais". Em São Paulo, há até 65 alunos por sala de aula, quando o recomendado pela Unesco é de no máximo 35 alunos. Para o Banco Mundial, professor é encargo.
Só quem não conhece a realidade da sala de aula e suas brutais precariedades pode achar que os problemas centrais da educação pública são falta de liderança, falhas de gestão e professores faltosos. Esses problemas certamente existem e devem ser atacados e ter suas causas buscadas. Por isso, não dá para sofismar: não há melhora qualitativa na educação sem investimento público pesado na formação continuada de professores, salários dignos que resgatem sua auto-estima, infra-estrutura adequada e participação da comunidade nos rumos educacionais.
Essa política do governo Serra, hoje também aplicada em âmbito federal, de realizar avaliações sucessivas e superpostas com provas, provinhas e provões e, posteriormente, oferecer bolsas, bolsinhas e bônus de baixo valor, estabelecendo concorrência entre escolas e entre professores, numa lógica de mercado, não resolverá em absoluto nossa grave crise educacional -possivelmente, a agravará.
Alguns efeitos previsíveis dessa política de premiação e punição devem se revelar. A vinculação dos recursos ao desempenho dos alunos tende a afastar das escolas que atendem a alunos mais carentes os melhores professores, pois estes sabem que essas crianças apresentam pior desempenho em testes padronizados. Outro efeito é que tenderá a haver uma corrida para as escolas com melhor desempenho da parte de alunos com notas mais elevadas, cuja presença é benéfica para o conjunto da turma. Fica explícito, assim, que esse tipo de política só tende a aumentar a distância dos desempenhos obtidos pelos alunos da mesma rede.
Mito mesmo é acreditar que o papel do Estado é estimular a produção de qualidade por meio de comparação, classificação e seleção, cujo efeito é produzir mais exclusão. Algo incompatível com o dito constitucional: Educação é dever do Estado e direito do cidadão.
-------------------------------------------------------------
IVAN VALENTE, 61, engenheiro mecânico, é deputado federal pelo PSOL-SP e membro da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados.
Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Tendências e Debates - Pág. A3 - Sexta feira, 14 de março de 2008
Análise de fotografia
Família Andrada
Carolina Raquel Duarte de Mello Justo
A fotografia que iremos analisar é uma fotografia jornalística, que parece ter servido muito bem aos seus objetivos, pois foi publicada duas vezes pela revista Veja: em 26 de setembro de 1973 e em 22 de janeiro de 1975. O autor da foto é Célio Apolinário e retrata a "Família Andrada", uma família, como diz a reportagem de que faz parte a foto, "sesquicentenária", ou seja, cuja tradição que se perpetuou no Brasil é advinda de Portugal. Portanto, tratando-se de uma foto que visava a ilustrar esse tradicionalismo, seria natural esperar-se que o fotógrafo pretendesse captar e principalmente transmitir essa idéia para os leitores através da foto. Assim, percebe-se, inicialmente, a clara intenção do fotógrafo de passar a impressão de "seriedade", tradição, maturidade, responsabilidade e hierarquia, traços que se observam na foto antes mesmo de que se conheça o texto ao qual ela se refere e que pode esclarecer melhor essas impressões.
O fotógrafo cumpriu bem o seu papel, enquanto fotógrafo jornalístico, pois conseguiu transmitir aquilo que ele (ou melhor, o conselho editorial da revista Veja e provavelmente a família "Andrada") pretendiam. Em outras palavras, nesta foto é visível um forte caráter ideológico, indicando que o fotógrafo não é um elemento neutro no ato fotográfico, nem, tampouco, um mero detonador/acionador da reprodução da realidade; pelo contrário, ele, na medida em que domina o equipamento (sua máquina), é capaz de manipular a imagem da realidade que será perpetuada. Assim, pretendemos analisar de que forma se deu a intervenção do fotógrafo, de acordo com determinada orientação, no ato fotográfico.
O primeiro elemento que chama a atenção na foto, e que lhe dá este tom de "seriedade", são os próprios "personagens" que compõem a foto, todos homens, trajando preto e, principalmente, com um semblante bastante sério e solene, que se observa inclusive no rosto das crianças, que parecem imitar os mais velhos: tanto não sorriem como apresentam-se numa postura não displicente, que seria normal entre as crianças. Além disso, é perceptível uma hierarquia entre estes personagens; as crianças no patamar inferior, os adutos no superior e, acima destes, seus ancestrais, cujos retratos, em forma de quadros pregados na parede, ocupam pouco mais da metade da foto e são, por isso, um pouco destacados em relação às próprias pessoas que estavam presentes no momento da foto. Além desta hierarquia, há um elemento forte na fotografia. que contribui para transmitir o tom de tradicionalidade e de seriedade: a presença unânime de homens, que confere à foto a idéia de família fortemente patriarcal, de homens de "pulso firme"
Esses elementos, no entanto, são insuficientes para comprovar o papel fundamental do fotógrafo para o resultado da foto. Não se pode esquecer que esta é uma foto que foi tirada exclusivamente por intenção do fotógrafo: também seus participantes quiseram compô-la e posaram para a foto. Portanto, eles também fizeram escolhas no sentido de orientar a foto para um resultado esperado. Mas queremos evidenciar a importância do fotógrafo para isso. Assim, é provável que o cenário escolhido para a foto tenha sido predeterminado pela família, independentemente do fotógrafo. Entretanto, a escolha desse cenário, apenas, não bastaria para transmitir a intencionalidade desejada (pela família, pela revista e pelo fotógrafo). O enquadramento da foto que inclui, por um lado, desde o chão (sem cortar corpos e pés) até a parte mais alta da parede onde estão afixados os retratos, não excluindo nenhum deles, e, por outro, também uma parte de uma estante repleta de livros, é importante para transmitir a idéia não só de uma família tradicional e séria, como engajada, unida (idéia de "todos") e culta. Aliás, esta impressão é importante, já que se trata de uma família de tradição política no Brasil (a de José Bonifácio, famosa figura da independência do país), sendo que dois de seus descendentes eram, naquele momento, deputados.
Além do cenário, a posição do fotógrafo foi importante, pois abaixou-se de forma a que altura da máquina estivesse próxima a dos pés dos meninos. Percebe-se isto porque, estando os meninos sentados no chão, e com as pernas estendidas, vê-se de frente a sola de seus pés (se o fotógrafo não tivesse agachado, os pés dos meninos seriam vistos de cima, ou seja, a parte de cima de seus pés e pernas). Por isso, para que a foto incluísse todos os retratos da parede, o fotógrafo inclinou a câmera um pouquinho para trás (direcionando-a para o hemisfério superior). Com, isso, ele obteve o efeito esperado de destacar a hierarquia familiar e de enfatizar a ancestralidade carecterizada pelos retratos.
Outra escolha importante do fotógrafo refere-se à composição da foto, que apresenta a disposição dos retratos na parede e dos descendentes vivos da família Andrada numa complementaridade. Isto se dá através de uma "linha imaginária" dividindo os hemisférios superior e inferior da foto, uma curva em forma de meia lua, que indica, por um lado, a idéia de pertencimento daquelas pessoas àquela estrutura familiar, ou seja, a idéia de que aqueles rostos um dia comporão aquela parede de retratos; por outro lado, e ao mesmo tempo, transmite a idéia da dominação que aqueles ancestrais exercem sobre as gerações futuras da família, isto é, a de que aqueles personagens ali sentados estão englobados por aquelas figuras cujos rostos de expressão forte e séria estão retratados na parede.
É possível concluir, assim, que uma grande parte da impressão que temos ao observar esta fotografia, que nos direciona a pensar de uma certa maneira sobre a realidade ali mostrada, deve-se fundamentalmente ao trabalho do fotógrafo, cujas escolhas produziram um efeito desejado previamente e que se concretizou no ato fotográfico.
Crônica:
A de sempre
Carlos Drummond de Andrade
— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.
— O preço?
— Não. A variedade. O embaras du choix.
— Mas se você já estava acostumado com uma...
— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. . Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.
— E aí?
— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.
— Não quis dizer o nome?
— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?
— Mas que custa experimentar, homem de Deus?
— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?
— Mais ou menos.
— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?
— Você está divagando.
— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.
— Ou se percam.
— E se percam. Exatamente. 0 importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.
Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?
Texto extraído do livro “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1974, pág. 137.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".
ARTIGO
14/3/2008
Artigo/Folha de S. Paulo
Premiação e castigo na educação
IVAN VALENTE
AS MEDIDAS adotadas pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo têm sido ungidas como a "salvação da lavoura", particularmente a premiação com bônus financeiro para diretores, professores e funcionários, com base especialmente em exames de avaliação de alunos, como o Saresp.
A secretária Maria Helena Castro, em entrevista à revista "Veja", disse que é preciso liquidar alguns mitos na educação. Para ela são mitos: que deve haver isonomia salarial entre professores, que melhores salários levam à melhoria do ensino, que o número de alunos por sala de aula interfere na qualidade do aprendizado, que a escola pública é carente de recursos. Para a secretária, nossos educadores ganham bem, e os recursos educacionais são suficientes. Maria Helena sentenciou que fecharia todas as faculdades de pedagogia do país, inclusive USP e Unicamp, porque elas se prestam ao "desserviço" de divulgar esses mitos.
Os tucanos estiveram oito anos no governo central e governam São Paulo há 13. FHC vetou o dispositivo do Plano Nacional de Educação que elevava o gasto público com educação de 3,7% para 7% do PIB. Criaram um pseudo-sistema nacional de avaliação para esconder a política de corte dos recursos. Seu objetivo sempre foi diminuir o papel do Estado e atribuir-lhe papel apenas regulatório.
Que resultado o país pode exibir nesses últimos 13 anos que não seja a constatação da péssima qualidade do nosso ensino, da degradação das condições de nossos educadores, do retrato cruel do analfabetismo funcional de 60 milhões de brasileiros? As políticas de fundos para a educação de FHC e de Lula não passam de socialização da miséria. Alguém acredita que o suplemento da União a Estados e municípios, de apenas R$1 bilhão ao ano de recursos novos nos próximos quatro anos, para um universo de 50 milhões de estudantes da educação básica, resultará em algum impacto real na qualidade de ensino?
Podemos nos fiar que a instituição de um piso salarial para o magistério brasileiro de pouco mais de R$ 450 por 20 horas semanais estimule a carreira? Enquanto isso, o país desembolsa R$160 bilhões por ano em juros da dívida pública.
Maria Helena, ao afirmar que o número de alunos por sala de aula é irrelevante para a qualidade da aprendizagem, lembra-nos o documento do Banco Mundial, sua bíblia, que afirma que "nos países de baixa e média renda é necessário diminuir o número de professores, aumentar o número de alunos em sala de aula e utilizar novas tecnologias educacionais". Em São Paulo, há até 65 alunos por sala de aula, quando o recomendado pela Unesco é de no máximo 35 alunos. Para o Banco Mundial, professor é encargo.
Só quem não conhece a realidade da sala de aula e suas brutais precariedades pode achar que os problemas centrais da educação pública são falta de liderança, falhas de gestão e professores faltosos. Esses problemas certamente existem e devem ser atacados e ter suas causas buscadas. Por isso, não dá para sofismar: não há melhora qualitativa na educação sem investimento público pesado na formação continuada de professores, salários dignos que resgatem sua auto-estima, infra-estrutura adequada e participação da comunidade nos rumos educacionais.
Essa política do governo Serra, hoje também aplicada em âmbito federal, de realizar avaliações sucessivas e superpostas com provas, provinhas e provões e, posteriormente, oferecer bolsas, bolsinhas e bônus de baixo valor, estabelecendo concorrência entre escolas e entre professores, numa lógica de mercado, não resolverá em absoluto nossa grave crise educacional -possivelmente, a agravará.
Alguns efeitos previsíveis dessa política de premiação e punição devem se revelar. A vinculação dos recursos ao desempenho dos alunos tende a afastar das escolas que atendem a alunos mais carentes os melhores professores, pois estes sabem que essas crianças apresentam pior desempenho em testes padronizados. Outro efeito é que tenderá a haver uma corrida para as escolas com melhor desempenho da parte de alunos com notas mais elevadas, cuja presença é benéfica para o conjunto da turma. Fica explícito, assim, que esse tipo de política só tende a aumentar a distância dos desempenhos obtidos pelos alunos da mesma rede.
Mito mesmo é acreditar que o papel do Estado é estimular a produção de qualidade por meio de comparação, classificação e seleção, cujo efeito é produzir mais exclusão. Algo incompatível com o dito constitucional: Educação é dever do Estado e direito do cidadão.
-------------------------------------------------------------
IVAN VALENTE, 61, engenheiro mecânico, é deputado federal pelo PSOL-SP e membro da Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados.
Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, Tendências e Debates - Pág. A3 - Sexta feira, 14 de março de 2008
Análise de fotografia
Família Andrada
Carolina Raquel Duarte de Mello Justo
A fotografia que iremos analisar é uma fotografia jornalística, que parece ter servido muito bem aos seus objetivos, pois foi publicada duas vezes pela revista Veja: em 26 de setembro de 1973 e em 22 de janeiro de 1975. O autor da foto é Célio Apolinário e retrata a "Família Andrada", uma família, como diz a reportagem de que faz parte a foto, "sesquicentenária", ou seja, cuja tradição que se perpetuou no Brasil é advinda de Portugal. Portanto, tratando-se de uma foto que visava a ilustrar esse tradicionalismo, seria natural esperar-se que o fotógrafo pretendesse captar e principalmente transmitir essa idéia para os leitores através da foto. Assim, percebe-se, inicialmente, a clara intenção do fotógrafo de passar a impressão de "seriedade", tradição, maturidade, responsabilidade e hierarquia, traços que se observam na foto antes mesmo de que se conheça o texto ao qual ela se refere e que pode esclarecer melhor essas impressões.
O fotógrafo cumpriu bem o seu papel, enquanto fotógrafo jornalístico, pois conseguiu transmitir aquilo que ele (ou melhor, o conselho editorial da revista Veja e provavelmente a família "Andrada") pretendiam. Em outras palavras, nesta foto é visível um forte caráter ideológico, indicando que o fotógrafo não é um elemento neutro no ato fotográfico, nem, tampouco, um mero detonador/acionador da reprodução da realidade; pelo contrário, ele, na medida em que domina o equipamento (sua máquina), é capaz de manipular a imagem da realidade que será perpetuada. Assim, pretendemos analisar de que forma se deu a intervenção do fotógrafo, de acordo com determinada orientação, no ato fotográfico.
O primeiro elemento que chama a atenção na foto, e que lhe dá este tom de "seriedade", são os próprios "personagens" que compõem a foto, todos homens, trajando preto e, principalmente, com um semblante bastante sério e solene, que se observa inclusive no rosto das crianças, que parecem imitar os mais velhos: tanto não sorriem como apresentam-se numa postura não displicente, que seria normal entre as crianças. Além disso, é perceptível uma hierarquia entre estes personagens; as crianças no patamar inferior, os adutos no superior e, acima destes, seus ancestrais, cujos retratos, em forma de quadros pregados na parede, ocupam pouco mais da metade da foto e são, por isso, um pouco destacados em relação às próprias pessoas que estavam presentes no momento da foto. Além desta hierarquia, há um elemento forte na fotografia. que contribui para transmitir o tom de tradicionalidade e de seriedade: a presença unânime de homens, que confere à foto a idéia de família fortemente patriarcal, de homens de "pulso firme"
Esses elementos, no entanto, são insuficientes para comprovar o papel fundamental do fotógrafo para o resultado da foto. Não se pode esquecer que esta é uma foto que foi tirada exclusivamente por intenção do fotógrafo: também seus participantes quiseram compô-la e posaram para a foto. Portanto, eles também fizeram escolhas no sentido de orientar a foto para um resultado esperado. Mas queremos evidenciar a importância do fotógrafo para isso. Assim, é provável que o cenário escolhido para a foto tenha sido predeterminado pela família, independentemente do fotógrafo. Entretanto, a escolha desse cenário, apenas, não bastaria para transmitir a intencionalidade desejada (pela família, pela revista e pelo fotógrafo). O enquadramento da foto que inclui, por um lado, desde o chão (sem cortar corpos e pés) até a parte mais alta da parede onde estão afixados os retratos, não excluindo nenhum deles, e, por outro, também uma parte de uma estante repleta de livros, é importante para transmitir a idéia não só de uma família tradicional e séria, como engajada, unida (idéia de "todos") e culta. Aliás, esta impressão é importante, já que se trata de uma família de tradição política no Brasil (a de José Bonifácio, famosa figura da independência do país), sendo que dois de seus descendentes eram, naquele momento, deputados.
Além do cenário, a posição do fotógrafo foi importante, pois abaixou-se de forma a que altura da máquina estivesse próxima a dos pés dos meninos. Percebe-se isto porque, estando os meninos sentados no chão, e com as pernas estendidas, vê-se de frente a sola de seus pés (se o fotógrafo não tivesse agachado, os pés dos meninos seriam vistos de cima, ou seja, a parte de cima de seus pés e pernas). Por isso, para que a foto incluísse todos os retratos da parede, o fotógrafo inclinou a câmera um pouquinho para trás (direcionando-a para o hemisfério superior). Com, isso, ele obteve o efeito esperado de destacar a hierarquia familiar e de enfatizar a ancestralidade carecterizada pelos retratos.
Outra escolha importante do fotógrafo refere-se à composição da foto, que apresenta a disposição dos retratos na parede e dos descendentes vivos da família Andrada numa complementaridade. Isto se dá através de uma "linha imaginária" dividindo os hemisférios superior e inferior da foto, uma curva em forma de meia lua, que indica, por um lado, a idéia de pertencimento daquelas pessoas àquela estrutura familiar, ou seja, a idéia de que aqueles rostos um dia comporão aquela parede de retratos; por outro lado, e ao mesmo tempo, transmite a idéia da dominação que aqueles ancestrais exercem sobre as gerações futuras da família, isto é, a de que aqueles personagens ali sentados estão englobados por aquelas figuras cujos rostos de expressão forte e séria estão retratados na parede.
É possível concluir, assim, que uma grande parte da impressão que temos ao observar esta fotografia, que nos direciona a pensar de uma certa maneira sobre a realidade ali mostrada, deve-se fundamentalmente ao trabalho do fotógrafo, cujas escolhas produziram um efeito desejado previamente e que se concretizou no ato fotográfico.
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